OS VÊNETOS
Nossos antepassados


O livro "Os Vênetos - Nossos antepassados", de autoria de Antônio D. Lorenzatto e publicado pela Edições Est de Porto Alegre ( Fone: 51-3336.1166, e-mail rovest@via-rs.net) traz um importante resgaste histórico sobre a Itália no século XIX e as causas/consequências da imigração dos Vênetos para o Brasil. Com a devida autorização, reproduzimos, a seguir os capítulos de números 27 e 43 que servem de subsídio histórico para entendermos melhor os depoimentos colocados no nosso site. Lendo estes documentos, cada vez mais nos curvamos reventes aos nossos antepassados ( Giuseppe, Ursulina, Girolamo e Palmyra Catharina).

Capítulo 27
AS CAUSAS DA EMIGRAÇÃO

27.1 - As causas internas ou nacionais

            Deus criou a pessoa humana para ser livre e, tanto quanto possível neste mundo, gozar de felicidade. Depois da vida e da saúde, o que o homem mais quer é a liberdade, e ser feliz. Porém, essas duas aspirações não se realizam quando faltam determinadas condições econômicas, como um pedaço de terra, casa própria, certos meios de subsistência como, por exemplo, alimento, saúde, vestuário, lazer, paz, etc.


Mapa da região de Véneto.

            a) Na Itália, no século XIX, ou seja, de 1800 até 1870, não havia paz. Em 1796 aconteceu a invasão napoleônica, que perdurou até 1815; em seguida sobreveio a dominação austríaca; depois surgiram as constantes insurreições e lutas pela sonhada independência e unificação total da pátria, conseguidas somente em 1870. Existiam igualmente perseverantes ressentimentos, revoltas, maus tratos e mortes entre os miseráveis e os mais abastados, gerando um clima insuportável. A imensa massa dos agricultores não possuía um palmo de terra nem casa própria, e o desemprego se alastrava, principalmente no norte da Itália, na bacia do rio Pó, onde vigorava o Feudalismo (= propriedade rural). Uns poucos suseranos ou soberanos eram donos de todas as terras, as quais eram confiadas aos vassalos para que as cultivassem e fizessem produzir. Esses súditos arrendavam os latifúndios dos patrões, dividindo-os e subdividindo-os em pequenas porções aos "contadini" (= agricultores) que os exploravam à meia ou menos.
            Para que esses campos produzissem satisfatoriamente, deviam ser adubados por conta de quem os cultivava. Adubo químico, não se conhecia. Usava-se esterco de animais, difícil de ser obtido. Quando pequeno, contou-me um imigrante italiano: "Na Itália alugamos um pedaço de terra, mas possuíamos apenas uma vaca que defecava pouco em relação à grande necessidade que tínhamos de adubo". Se a seca ou outros fenômenos meteorológicos impediam uma colheita satisfatória, o arrendatário deveria repor o que faltara com a safra seguinte. Às vezes aparecia um ou outro "contadino" de mais recursos e oferecia maiores rendas; o anterior era mandado embora sem quaisquer indenizações ou direitos. Não existiam leis trabalhistas para os agricultores e operários, e a justiça era feita pelos leões, pelos poderosos.
            Encarando o futuro, não se divisava nenhuma luz no fim do túnel: seria sempre pagar aluguel das sugadas terras e das pobres casas. Os burgueses e os patrões exploravam os súditos o quanto podiam. Era dificílimo conseguir terra para arrendar e emprego nas raras indústrias e nos pequenos artesanatos. O país encontrava-se na miséria. Era tudo por se fazer - estradas, pontes, hospitais, indústrias etc., e o governo não dispunha de recursos para realizar essas necessárias e inadiáveis benfeitorias, pois os vassalos e os suseranos não pagavam impostos; quem contribuía eram os pobres agricultores, os patrões e seus operários. Os tributos incidiam sobre o sal, a farinha, o azeite, a carne, etc.

            b) Misérias - Moravam todos - avós, pais, filhos, noras e netos amontoados dentro duma pobre e pequena casa de alvenaria, de propriedade do dono das terras, a quem sempre pagavam aluguel. Na parte térrea funcionava a estrebaria para alojar a junta de bois, uma ou duas vaquinhas com seus terneiros; lá também se guardavam as colheitas e o pasto para a estação hibernal. A família se alojava na parte superior, com uns poucos e apertados quartos, a cozinha, etc. O fogo era aceso exclusivamente para preparar os alimentos. Como combustível empregavam esterco ressequido de animais, raízes de plantas, alfafa, canas de milho e gravetos provenientes da poda das parreiras e de outras árvores frutíferas. Durante os meses do rigoroso inverno, por causa do frio e da neve, não se conseguia trabalhar os campos; a família toda passava o tempo e os dias no estábulo, transformado em estufa natural pelo calor e hálito do gado. As mulheres, além das lidas da casa e da cozinha, costuravam, remendavam, teciam e fiavam, faziam crochê, tricô, produziam tranças com palha de trigo para, depois, confeccionar chapéus, sacolas, etc.
            Os homens, como sempre, levavam vida mais folgada. O único trabalho era, com grandes e apropriados ancinhos, derrubar a neve que se acumulava sobre os telhados. Afora isso, se ocupavam, quando havia alguém alfabetizado, lendo ou escutando as "Astúcias de Bartoldo", "Os Reais da França" e outros livros de caráter popular; contavam e recontavam histórias; jogavam: mora, cartas, dama, xadrez, dominó; inventavam e repetiam anedotas, charadas, etc.

            c) Além dessa situação de miséria, grassavam as epidemias. A malária, por ano, matava umas 40.000 pessoas. Uns 100.000 morriam de pelagra (uma doença proveniente da falta de certas vitaminas nos alimentos ingeridos, ou seja, uma alimentação incompleta). Ela se manifestava sob três aspectos: chagas na cútis, perturbações gastrointestinais, neuroses. A cólera, anualmente, levava para a sepultura umas 400.000 vidas. O próprio Camilo Benzo, Conde de Cavour, foi vitimado por ela. Havia também os que morriam porque não dispunham de meios para pagar o médico; igualmente muitos pereciam de fome e frio. A filha primogênita de meus avós paternos, a tia Sofia, faleceu gelada antes de completar quinze dias. Tantos óbitos numa nação que, naqueles anos, contava com uns trinta milhões de habitantes. Em compensação, havia também inúmeros nascimentos.

            d) O espectro da fome e do desemprego campeava por toda a parte. Por causa da miséria e da escassez de comida, houve casos de venda de inocentes. Alguns moravam em grutas, cavernas, casas de barro, etc.

            e) A numerosa massa popular era impedida de votar, porque o título eleitoral devia ser comprado por alto preço; assim apenas uns poucos o adquiriam e só esses votavam e podiam ser eleitos; eles elaboravam as leis, naturalmente sempre favoráveis a eles. Por isso é que surgiu o adágio "Sapete che i siori, Ia lege i se Ia fa lori." (Os ricos fazem as leis em proveito próprio.) Outrossim, a quase totalidade do povo era formada por analfabetos, pois não tinham como estudar e, dessa forma, não conseguiam votar.

            f) Queremos emigrar. Diante de toda essa horrenda situação e sem previsão de mudanças favoráveis, os infindos miseráveis compuseram os versos seguintes: "L'Itáha è ammalata e spedita dai dottori. Per guarire 1'Itália bisogna tagliar Ia testa ai Signori". (A Itália está doente e desenganada pelos médicos. Para curar a Itália é preciso cortar a cabeça dos ricaços.) Vou apresentar alguns trechos duma carta, dum manifesto, com data de 1876, que agricultores lombardos endereçaram ao "nistro Nicotera, que tentava restringir a emigração. "Senhor Ministro, olhai para nossos rostos, contemplai nossas faces pálidas e amarelentas, nossas bochechas afundadas no rosto. Tudo isso, como muda eloqüência, não vos acusa? O desumano cansaço e a absoluta falta de comida não vos incriminam? A nossa vida é tão amarga e dolorosa, que pouco difere da própria morte! Cultivamos o trigo para os patrões e não sabemos que gosto tem o pão! Cuidamos dos parreirais e nunca tomamos vinho! Alimentamos as vacas e nunca comemos carne ou tomamos leite! Não sabemos que sabor tem o queijo! Vestimo-nos com farrapos e moramos em covis! E assim mesmo não nos quereis deixar emigrar? Oprimidos e sobrecarregados por todas as maneiras possíveis, nós vamos partir, para, desse modo, vos deixar mais cômodos."
            Em face de toda essa carestia, quando os filhinhos pediam queijo, manteiga, requeijão, soro e leite, as mães respondiam com a seguinte rima:

Queres formaio? (queijo)
No ghim tágio = não tenho pra te cortar.
Queres butiro? (manteiga)
No ghin tiro = não pego porque não tem.
Queres paina? (requeijão)
Solo pochetina = só um pouquinho.
Queres scoro? (soro de leite)
Fin al colo = toma até que chegue ao pescoço (bastante).
Queres late? (leite)
Fin a le culate = Leite só até as coxas, onde chegavam os baldes quando o leite era levado para a casa dos ricos donos.

            Diante dessa total falta de comida, liberdade, felicidade, comodidade, conforto e sem vislumbrar um futuro melhor - e como a esperança é a última coisa que morre no homem -, os miseráveis italianos julgavam que a solução era emigrar. Pouco se lhes dava abandonar uma pátria madrasta que os fazia sofrer e morrer. Diziam: "Mortos por mortos, vamos tentar uma saída!" Para quem se achava nas trevas, nas sombras da morte, no inferno, qualquer melhora ou esperança do melhor seduzia. É vantagem deixar o tártaro para ingressar no limbo ou no purgatório. Em face dessas horrendas dificuldades, reacendeu-se, reviveu o gênio, o espírito, o ideal dos velhos Vênetos: foram assaltados pela coragem, pelo pioneirismo, pelo caráter desbravador, pela disposição de vencer sempre pela bravura, pelo trabalho. Como seus ancestrais, decidiram emigrar, enfrentar o desconhecido e vencer pela luta! Sem combate não há vitória!
            Uns poucos buscavam uma solução provisória, imperfeita, indo trabalhar nos países vizinhos (na França, na Alemanha, etc.), mas os bravos, que formavam a grande maioria, optaram pela fabulosa América, da qual se afirmava: "Ndar in Mérica par catar Ia cucagna!" (É preciso emigrar para a América, a fim de encontrar a fortuna.)
            O governo italiano pouco fez para solucionar a sorte de seus súditos e assim impedir a emigração. Pelo contrário; nesse êxodo, via a válvula de escape duma iminente explosão social de conseqüências imprevisíveis. Quem se opunha à saída dos miseráveis agricultores, eram os abastados latifundiários "i siori", que contemplavam suas vastas propriedades incultivadas e a produção diminuta. Por isso os que partiam exclamavam:

"Noi, italiani lavoratori,
Alegri andíamo nel Brasile.
E voi alui d'Italia Signori,
Lavoratelo il vostro badile,
Se volete mangiar, siori!"

"Nós, italianos trabalhadores,
Alegres partimos para o Brasil.
E vós outros, da Itália senhores,
Se quiserdes nutrir-vos bem,
Agarrai as ferramentas, virai lavradores".

            g) Uma outra causa interna da emigração foi a superpopulação. Os italianos do norte e do Vêneto eram muito férteis, e não conheciam métodos anticoncepcionais. Aliás, é natural, é próprio de todo o ser vivo, quando está ameaçado no sobreviver, aumenta a sua capacidade reprodutiva. Observe-se um pé de laranjeira: quando está com dificuldades de viver, a sábia natureza procura seus fins; ele se sobrecarrega de frutos, para que a espécie não desapareça.

27.2 - Causas externas da emigração

            Enquanto todas essas desagradabilíssimas dificuldades, torturavam os miseráveis da Itália, apareceram, especialmente no norte dessa nação, inúmeros representantes dos Estados Unidos, da Argentina e do Brasil. Eram embaixadores desses países, pagos para aliciar agricultores e operários para que fossem trabalhar nessas longínquas terras. Esses emissários eram verdadeiros corretores, que recebiam porcentagem sobre cada indivíduo conquistado. Houve momentos em que recebiam até 18 francos por um trabalhador angariado. Alguns desses propagandistas eram gratificados também pelas companhias de navegação e pelos fazendeiros paulistas.
            Aqui, como em toda a propaganda, há sempre exageros, meias verdades, para não dizer mentiras. Vale a pena lembrar o ensinamento de Voltaire: "Menti! Menti! Alguma coisa pegará!" Falsificavam-se até cartas, que teriam sido escritas por alguém que já se encontrava no paraíso, que era a América. Os propagandistas do governo brasileiro prometiam viagem grátis, 50 hectares de fertilíssima terra e, quando chegados ao destino, teriam alimentação durante seis meses, sementes, ajuda na construção da casa, ferramentas de trabalho, isenção de impostos. Faltava só dizer que aqui se amarravam os cachorros com lingüiça e as plantas, como a bananeira, produziam salsichas. Era deixar o horrendo inferno italiano e ingressar no céu brasileiro.
            Eles, de tanto insistir, chegaram a "fazer a cabeça" de seus ouvintes, tornando-os fanáticos.
            Os representantes da Igreja, os bispos e os sacerdotes, os verdadeiros amigos do povo, recomendavam calma, moderação e principalmente, prudência. Lembravam as dificuldades da longa viagem, todo o recomeçar é difícil e doloroso, a língua diferente, a falta de assistência religiosa, etc. Mas tudo isso pesava pouco nas cabeças dos obstinados. Quando o bispo de Cremosa, no sermão da missa, recomendava aos fiéis que pensassem seriamente sobre a decisão de emigrar, os ouvintes, hipnotizados pelos propagandistas, começaram a sair, deixando o prelado a falar para os bancos e as paredes...
            A emigração impediu uma convulsão e explosão social de conseqüências imprevisíveis. Ela foi uma necessidade, a única saída para sobreviver. Não foi um gesto de fuga, um ato de covardia, pois somente os corajosos, cuja maioria eram Vênetos, se decidiram pela emigração.
            O Brasil promovia toda essa propaganda porque, em nossa pátria, a escravidão estava com os dias contados. Em 1850, foram vetados o comércio e a importação de escravos procedentes do Continente Negro. A 28 de setembro de 1871, era aprovada a lei do Ventre Livre: os filhos dos escravos que nascessem após essa data vinham ao mundo livres. A escravatura, depois de encarniçadas lutas parlamentares, foi definitiva e oficialmente abolida a treze de maio de 1888.

27.3 - A abolição da escravatura no Brasil

            Embora essa questão não faça parte da História dos Vênetos de hoje, gostaria de aproveitar o ensejo para deixar alguns esclarecimentos necessários sobre esse assunto e fazer justiça à família imperial do Exmo. Sr. Dom Pedro II, e isso porque muitos dos descendentes dos escravos, os beneficiados com o decreto, afirmam que a assinatura da Princesa Isabel, em nada ou muito pouco favoreceu os cativos. Esses desconhecedores da História ensinam que quem merece as honras, as glórias e as recompensas é o indômito jovem Zumbi, o herói do Quilombo dos Palmares, de cuja república ele foi presidente.
            Na verdade Zumbi se insurgiu contra essa desumana maneira de tratar os semelhantes. Ele, com inúmeros outros negros escravos, refugiou-se na República Negra dos Palmares, em Alagoas, e por muitos anos foi um destemido líder.
            Essa República durou exatamente um século: de 1595 a 1695. Zumbi foi morto pelas forças do governo a 20 de novembro de 1695. Em que pese todo o empenho dele para libertar seus irmãos negros, a escravidão prolongou-se por mais 193 anos. Então Zumbi não foi o pai da abolição; foi apenas um escravo fugitivo que se ajuntou com inúmeros outros, uns 20 mil, que tudo fizeram para se manter livres; pouco ou nada se empenharam para libertar os demais irmãos escravos.
            Além de escritores, políticos, parlamentares, quem realmente se empenhou para pôr cobro aos mais de 300 anos de servidão no Brasil foi a Família Imperial de Dom Pedro II. Durante anos insistiu com os deputados para que elaborassem o decreto, que ele queria sancioná-lo o mais breve possível. O Imperador, devendo viajar para o exterior e não querendo perder mais tempo, incumbiu a filha, a Princesa Isabel, para subscrever a lei da abolição.
            Depois de muitas lutas, discussões acaloradas, correções, ficou pronto o texto. Era o dia 13 de maio do ano de 1888, quando Dona Isabel, a redentora, sentou-se alegremente para sancionar e promulgar a lei que abolia para sempre a escravidão no Brasil. Antes de assinar o histórico documento, de pena na mão, sorrindo e feliz, olhou para o mais ferrenho escravagista, o senador João Maurício Wanderley, dito Barão de Cotegipe, observand-?lhe: "Sr. Barão, enfim conseguimos!" Mas ele sentenciou: "Majestade, esta assinatura vai custa-lhe a coroa!" E assim aconteceu. Um ano e meio depois, a 15 de novembro de 1889, foi proclamada a República Brasileira, e a Família Imperial, enviada para o exílio. Portanto, em nossa terra, o sistema republicano de governar não foi introduzido como um ideal de governo, mas como uma vingança contra uma boa obra da Monarquia. Por isso, esta nossa república não vai bem.
            Somente dar liberdade aos escravos não era suficiente; agora, mais do que nunca, careciam de muita ajuda, porque encontravam-se destituídos de terras, casas, dinheiro, instrução e educação. O professor de história Dr. Luiz Carlos de Mesquita Rothmann asseguro-?me que a Família Imperial estava elaborando um plano para socorrer esses recé-libertados. Mas o forçado exílio pulverizou esse propósito. A novel República, assoberbada por infindos problemas, ignorou tal plano e nada fez em prol dos alforriados. Por isso é que a quase totalidade dos nossos irmãos de cor continuam até hoje marginalizados e economicamente semi-escravos. Concluindo: afirmar que o dia 13 de maio e a Princesa Isabel nada representam para a raça negra é ignorar a História do Brasil e perpetrar grave injustiça contra a Família Imperial.
 
 

 Capitulo 43

OS ITALIANOS QUE FORAM PARA SÃO PAULO

            Os peninsulares, que no último quartel do século passado partiram da Itália para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, chegaram com o propósito de conseguir um pedaço de terra de sua propriedade e nela trabalhar, produzir e enriquecer. Queriam ser livres e donos. Os que vieram com destino para São Paulo, exceto os que foram para lá enganados, traziam no coração primeiramente encontrar trabalho e depois obter um pedaço de terra própria. Começaram a aparecer em 1874. O sonho do pária italiano era: ir para a América a fim de encontrar a fartura de tudo, a fortuna!

43.1 - As causas da emigração de Italianos para São Paulo

            Em 1850, saiu a lei que proibia o tráfico de escravos. Em 1871, apareceu o decreto imperial do ventre livre: o negro que nascesse após a publicação dessa determinação aparecia embalado nos braços da liberdade. Portanto, a escravidão estava com os dias contados. Que fazer sem escravos? Onde arrumar braços para trabalhar na cafeicultura? Então os fazendeiros e o governo de São Paulo viram na imigração italiana a solução para o gravíssimo problema. Para isso, partiram propagandistas para o norte da Itália, onde as notícias contavam que existia muita e excelente mão-de-obra. Em toda a propaganda há meias verdades, para não dizer mentiras, e por esse modo desonesto aliciar milhares de agricultores necessitados para que viessem trabalhar nas plantações de café, no interior do Estado Bandeirante. A viagem seria paga, tudo facilitado, casa onde morar, depois de algum tempo, com o dinheiro que iriam conseguir pelo trabalho, poderiam comprar um pedaço de terra e fazer sua independência... e, assim logrados em 1877 apareceu a primeira leva, formada por umas duas mil almas. De 1882 em diante, a corrente imigratória se tornou contínua e sempre em crescimento, como uma bola de neve. De 1890 até 1920, uns 700 mil italianos procuraram estabelecer-se no Estado Bandeirante.

43.2 - A Sociedade Promotora da Imigração

            Para dinamizar, organizar e moralizar os serviços da imigração, os fazendeiros paulistas, em 1856, estruturaram a Sociedade Promotora da Imigração, a fim de trazer imigrantes de origem agrária. O primeiro diretor-presidente da Promotora foi o grande cafeicultor Martinho da Silva Prado Júnior. Viajou várias vezes ao norte da Itália, examinando cuidadosamente todos os problemas referentes à emigração e à viagem para o Brasil. Conta-se que ia às aldeias vênetas para fazer propaganda das fazendas de café, misturando-se com os camponeses, cantando com eles em língua vêneta. À Sociedade Promotora interessava que os imigrantes fossem agricultores com família constituída, porque empregariam todos nos trabalhos do cultivo do café. A Promotora igualmente administrava a Hospedaria dos Imigrantes no Brás, na cidade de São Paulo, e funcionava como verdadeiro mercado de trabalho. Apesar desses cuidados, sempre houve exploração, fraudes, logros, atritos causados pela ganância dos propagandistas na Itália, pelas companhias de navegação e também por muitos fazendeiros acostumados a lidar com escravos e não com homens livres, mas desprotegidos pelas leis trabalhistas. Somente no começo deste século apareceram algumas normas para defender os assalariados.

43.3 - Os sofrimentos dos imigrantes

            Tratados como escravos

            A maioria dos cafeicultores, que durante tantos anos tinham possuído e lidado com escravos, haviam formado em si uma mentalidade escravagista e passaram a tratar os italianos, não como operários, mas como escravos. Por isso, muitos faziam sobre os colonos uma vigilância tipo escravocrata, com multas, falta de liberdade de ir e vir, fiscalização dos horários de trabalho, etc. O fazendeiro, não raro, achava-se no direito de se imiscuir até nos assuntos domésticos dos imigrantes, considerados trabalhadores de segunda categoria, uns semi-escravos. Muitos italianos recém-chegados foram alojados nas senzalas dos escravos ou em habitações coletivas e em casas muito ruins. Os peninsulares deviam se abastecer de víveres nos armazéns dos fazendeiros, a preços abusivos, com o fim de endividar os colonos e assim obrigá-los a permanecer naquela propriedade.
            Os salários, além de baixos, eram pagos com meses de atraso. Muitos chegavam ao fim do ano com prejuízo, e o sonho da terra e da casa próprias se evaporava. Diante disso, muitos fugiam antes que o fazendeiro acertasse as gananciosas contas.

           Outro grande sofrimento: o isolamento

            Na Itália, esses "contadini" viviam quase amontoados. Todos falavam a mesma língua e se entendiam. Aqui no Brasil, a conversa era em Português, encontrava-?se muito longe da sede das outras fazendas, sem estradas e meios para se visitarem. A distância quase infinita dos parentes e amigos que ficaram na pátria mãe. As queixas contra o isolamento, foram uma constante, apresentadas oralmente no Brasil e por correspondência, na Itália.
Mas, com o perpassar dos dias, o isolamento foi cedendo, principalmente quando os próprios imigrantes passaram a formar sociedades esportivas (bocias, cartas), sociais (danças), culturais (coros, teatros e circulação de jornais em língua materna). No começo também o isolamento religioso foi cruel. Na Península, as igrejas distavam poucos quilômetros da moradia, mas aqui no Novo Mundo o atendimento religioso era realizado somente nas cidades. Com o tempo, esse sofrimento findou.

43.4 - Atritos

            Sempre houve choques entre os cafeicultores acostumados com os escravos e os operários, que reivindicavam escolas, assistência médica, jurídica e religiosa, sabend-?se que a religiosidade sempre foi a característica desses imigrantes.
            Os próprios italianos, quer nas fazendas, quer nas cidades, fizeram proliferar as "Società di Mutuo Socorro", para se ajudarem e protegerem. Essas instituições eram mantidas por subscrições e contribuições dos sócios. Os colonos podiam fazer pequenas plantações particulares nas terras do patrão. Esse trabalho era feito nas horas vagas, a fim de ajudar a economia doméstica. O que sobrasse podia ser vendido, gerando mais renda. Mas muitos fazendeiros cerceavam essas minilavouras. Em 1913, os colonos foram à greve para garantir esse direito.

43.5 - Sem terra e sem casa próprias

            Esses adventícios itálicos sempre acalentaram dentro de si a esperança de terem o seu pedaço de terra e sua casa, a fim de se sentirem donos e livres. No pensar deles, o trabalho nas fazendas deveria ser apenas um estágio. Eis que a própria dinâmica da economia cafeeira forçou o retalhamento do solo, pois aos poucos, com a monocultura, essas terras empobreceram e forçaram os fazendeiros a loteá-las e vendê-las aos colonos para que cultivassem outros produtos. Conseguida, enfim, a suspirada propriedade, passaram a viver como autônomos, dando início a uma importante atividade: a pequena propriedade e a policultura. Daqui, muitos partiram para as cidades e se tornaram artesãos, operários, comerciantes, industrialistas, etc.

43.6 - Estatísticas

            Sem querer magoar e humilhar ninguém, mas a verdade foi que o trabalhador livre produzia três vezes mais do que um escravo. E trabalho havia, e muito, e aumentava sempre mais. Em 1880, existiam 69.540.000 pés de café; em 1930, eram 1.180.000.000, com uma produção de 19.484.000 sacas. Com isso, na década de 1930, chegaram a uma superprodução, que levou os cafeicultores a jogar toneladas de grãos no mar ou destruí-los pelo fogo.

           Concluindo

            O Estado de São Paulo, com justiça, considera-se economicamente, o mais poderoso e progressista. Ele é a locomotiva que puxa todos os outros. Por isso ele tem como lema (em latim): "Duco, non ducor" (= eu conduzo, não sou conduzido). Mas essa sua grandeza ele a deve, em grande parte, aos imigrantes, especialmente italianos. Esses miseráveis esfarrapados, esses proletários carregados de filhos, esses párias da ínfima classe, com seu trabalho, dedicação, suor, gemidos, lágrimas e sangue, fizeram a grandeza do Estado Bandeirante. Desses miseráveis e semi-analfabetos, que no fim do século passado partiram, chorando e com fome, da Itália, com o rolar dos anos contemplaram nos seus descendentes o aparecimento de grandes industrialistas, comerciantes, professores, médicos, advogados, escritores, poetas, artistas, esportistas, políticos, cantores, músicos, cardeais, bispos, sacerdotes e religiosos.